domingo, 30 de agosto de 2009

DE TODAS AS OBRAS - Bertolt Brecht

De todas as obras humanas, as que mais amo são as que foram usadas.


Os recipientes de cobre com as bordas achatadas, e com mossas


os garfos e facas cujos cabos de madeira


Foram gastos por muitas mãos; tais formas


São para mim as mais nobres. Assim também as lajes


Polidas por muitos pés, e entre as quais


Crescem tufos de grana: estas são obras felizes.


Admitidas no hábito de muitos


com frequência mudadas, aperfeiçoam seu


formato e tornam-se valiosas


Porque delas tanto se valeram.


Mesmo as esculturas quebradas


com suas mãos decepadas, me são queridas. Também elas


São vivas para mim. Deixaram-nas cair, mas foram carregadas.


Embora acidentadas, jamais estiveram altas demais.


As construções quase em ruína


Têm de novo a aparência de incompletas


Planejadas generosamente: suas belas proporções


Já poem ser adivinhadas, ainda necessitam porém


De nossa compreensão. Por outro lado


Elas já serviram, sim, já foram superadas.


Tudo isso me contenta.

Trecho de "A Terra Desolada" - Sobre a Guerra e o odio dos homens.

"Cidade irreal,
Sob a fulva neblina de uma aurora de inverno,
Fluía a multidão pela Ponte de Londres, eram tantos,
Jamais pensei que a morte a tantos destruíra.
Breves e entrecortados, os suspiros exalavam,
E cada homem fincava o olhar adiante de seus pés.
Galgava a colina e percorria a King William Street,
Até onde Saint Mary Woolnoth marcava as horas
Com um dobre surdo ao fim da nona badalada.
Vi alguém que conhecia, e o fiz parar, aos gritos: “Stetson,
Tu que estiveste comigo nas galeras de Mylae!
O cadáver que plantaste ano passado em teu jardim
Já começou a brotar? Dará flores este ano?
Ou foi a imprevista geada que o perturbou em seu leito?
Conserva o Cão à distância, esse amigo do homem,
Ou ele virá com suas unhas outra vez desenterrá-lo!
Tu! Hypocrite lecteur! – mon semblable –, mon frère!”

Fonte: Eliot, T. S. 1981. Poesia, 6a edição. RJ, Nova Fronteira. O poema todo compõe-se de cinco seções (o trecho acima corresponde à primeira, intitulada “O enterro dos mortos”) e foi originalmente publicado em 1922.

A Tempestade (Khalil Gibran)

Pássaro e o homem tem essências diferentes.
O homem vive à sombra de leis e tradições por ele inventadas;
o pássaro vive segundo a lei universal que faz girar os mundos.
Acreditar é uma coisa; viver conforme o que se acredita é outra.
Muitos falam como o mar, mas vivem como os pântanos.
Muitos levantam a cabeça acima dos montes;
mas sua alma jaz nas trevas das cavernas.
A civilização é uma arvore idosa e carcomida,
cujas flores são a cobiça e o engano e cujas frutas
são a infelicidade e o desassossego.
Deus criou os corpos para serem os templos das almas.
Devemos cuidar desses templos para que sejam
dignos da divindade que neles mora.
Procurei a solidão para fugir dos homens, de suas leis,
de suas tradições e de seu barulho.
Os endinheirados pensam que o sol e a lua e as estrelas se levantam
dos seus cofres e se deitam nos seus bolsos.
Os políticos enchem os olhos dos povos com poeira
dourada e seus ouvidos com falsas promessas.
Os sacerdotes aconselham os outros,
mas não aconselham a si mesmos,
e exigem dos outros o que não exigem de si mesmos.
Vã é a civilização. E tudo o que está nela é vão.
As descobertas e invenções nada são senão brinquedos
com a mente se diverte no seu tédio.
Cortar as distâncias, nivelar as montanhas,
vencer os mares, tudo isso não passa de
aparências enganadoras, que não alimentam ocoração e nem elevam a alma.
Quanto a esses quebra-cabeças, chamados ciências e artes,
nada são senão cadeias douradas com os quais o homem
se acorrenta, deslumbrados com seu brilho e tilintar.
São os fios da tela que o homem tece desde o inicio
do tempo sem saber que, quando terminar sua obra,
terá construído a prisão dentro da qual ficará preso.
Uma coisa só merece nosso amor e nossa dedicação, uma coisa só...
É o despertar de algo no fundo dos fundos da alma.
Quem o sente não o pode expressar em palavras.
E quem não o sente, não poderá nunca conhecê-lo através de palavras.
Faço votos para que aprendas a amar as tempestades em vez de fugir delas.


Gibran Khalil Gibran (1883-1931)

À espera dos bárbaros (Konstantinos Kaváfis)

O que esperamos na ágora reunidos?


É que os bárbaros chegam hoje.


Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?


É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.


Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?


É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.


Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?


É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.


Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?


É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.


Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?


Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.


Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Stuart Edgard Angel Jones

"Mãe você me pergunta se eu acredito em Deus. Eu te pergunto que Deus? Tem sido minha missão te mostrar Deus no Homem, pois, somente no homem ele pode existir. Não há homem pobre ou insignificante que pareça ser, que não tenha uma missão. Todo homem por si só influencia a natureza do seu futuro. Através de nossas vidas nós criamos ações que resultam na multiplicação de reações. Esse poder que todos nós possuímos, esse poder de mudar o curso da história, é o poder de Deus. Confrontado com essa responsabilidade divina, eu me curvo diante do Deus dentro de mim."

Stuart Edgard Angel Jones

sábado, 8 de agosto de 2009

À meu pai

Carta Para Si Mesmo
Danilo Dal Farra Ribeiro


E como se praquele menino
valesse a eternidade de cada pedra que existe,
fez uma casa delas, bem pequenas,
mas cada uma.

De valor tão inestimável
que não poderia existir concretamente.

Das pedras ouvi histórias
de uma esperança romântica
que se fez vivida numa realidade concreta.

Cada pequena tem sua versão,
mas todas dizem do menino-Deus-humano
que queria mudar o mundo.

Mudar o mundo é muita coisa.

E ali ele se deitou,
no telhado de sua primeira casa,
a ensinar os filhos a contar estrelas,
como quem contempla uma infinita missão.

Dançou e girou ao som dos poetas
que falavam palavras suas.
Embalou suas crias no colo
enquanto dirigia rumo a esse infinito que abriu.

As pedras colhidas,
cada vez mais longe,
contam de um navio que descobre mares.

Todas as roupas foram lavadas ali mesmo,
ao abrir de novos nasceres,
novos sóis.

Encontrou terras e correu sobre elas,
empinando pipas e entregando-as
aos novos meninos,
que não mais precisariam ir a venda
buscar café.

Jogou-os por cima do ombro
a caírem nas águas
que caía sozinho.
Tinha que dividir a alegria
que não teve de ser menino.

Deus-homen-super-homem.
Mudar o mundo é muita coisa.

Continuou a escalar colinas
com eles no cangote
para que vissem horizontes
que não o foram mostrados.

Caiu de pé tantas vezes
mordendo a mandíbula
para que não o socorressem.
Nos olhos de seus filhos
fez brilhar todas as sensações
que não pudera viver.

Menino-Deus-humano.
Carne e osso.
De levantar paredes
ganhou calos de vida.
Mudando paisagem
na força do punho do dia-a-dia.

Fez jardins.

Aí escorre dele a lágrima calada.
Sentado, corre pra si,
e volta ao trabalho.

Menino que fez brilhar o sonho de tanta gente.
As pedras, as estrelas, a água...
E o jardim? E o vento? E a varanda?
O fogão de lenha? A rede?

A vida é uma carta
que a gente escreve
pra gente mesmo.

E no meio da noite
o menino pega seu lápis
e senta no chão
ao lado das brasas
do fogão de lenha e começa:

“Filho, se um dia ler esta carta,
saiba que escolhi não cumprir
o destino que me deram.
Se vou morrer um dia,
vou morrer pela vida.”




Nunca vi uma pedra mentir
E tem uma certa alegria nisso
Pois elas confessavam, cúmplices,
segredos desse menino.

Uma mão a mim e a outra a tudo que existe.
E assim vamos os três,
graves como convém
a um Deus e a um poeta,
recolhendo as próximas.

Desenhou um sol.
Um sol mal pintado.
Feito à mão.
E me ensinou a rir do simples
e me emocionar com ele.

Aquele sorriso do menino me intrigava.
Um entendimento puro.

Mudar o mundo é muita coisa.

Aquele sorriso me gerou um momento inacabado.
Não por falta de fazer, mas pela generosidade
de se permitir ser continuado.

Guardei o presente.

Hoje sigo esse caminho que é também desse menino.
Ele segue sorrindo em meus sonhos,
como se soubesse onde vai dar essa estrada.
Ao meu lado descubro outros olhos que se fazem brilhar.
Talvez centenas, que um dia também sonharam com ele
e respiraram dessa esperança, dessa coragem.

Uma mão pousada sobre o peito
que constrói toda uma casa
de pequenas pedras,
com lareira e coberta.

Pra que, algum dia, que tu sabes qual é,
se encontre consigo mesmo
a entregar essa carta.
E que esse seja seu melhor momento.

(Inspirado em “O Guardador de Rebanhos” de Alberto Caeiro)

Dedico a meu Pai – o menino.